sábado, 26 de março de 2011

Quando estavas por aqui

Quando estavas por aqui, tudo era belo
E a poesia reinava como um deus impossível.
Quando te rias por aqui, tudo era vivo
E as paredes te fitavam a contemplar-te.
Quando dormias por aqui, tudo era uma oração silenciosa
E os demônios paravam para te cultuar.

Quando estavas por aqui...
Meu Deus, quando estavas por aqui?
Quando estiveste aqui?
Que tempo foi esse?, tão longínquo em recordação e tão próximo em sensação
(Ou o inverso, ou talvez nada!)
Mas por acaso estiveste mesmo aqui?

Agora percebo,
Estiveste aqui,
Embora não estiveste num lugar físico,
Embora não estiveste ao lado ou defronte a mim;
Estiveste (e sei porque na lembrança de agora sinto que o sentira) em mim,
Foste sensação e tiveste existência psicológica.
Estiveste em mim, e basta que estiveste.

Essa existência e esse tempo que se perderam...
Que se perderam como se se perdesse o Paraíso,
Como um pecado original não cometido seguido da Queda
(Da Queda, ah, meu Deus, da Queda que é tua ausência,
A sensação da tua ausência,
A sensação falsa de ti na sensação da ausência de ti.)

Quando estavas por aqui,
Estavas só em mim,
Assim como outrora estive eu em tudo,
Mas estavas a ser-me o mundo do deus impossível, das paredes a te contemplar e dos demônios a te cultuar.]

Quando estavas por aqui... Ah, meu Deus, quando estavas por aqui...
Hoje estás numa lembrança falsa de onde estiveste,
Hoje estás num sentimento nostálgico do que fostes,
Porém o que de ti está nesta lembrança e sentimento é falso,
Pois se fosses tu não haveria lembrança nem sentimento nostálgico,
Só haveria o mundo contigo e com o deus impossível e com as paredes a te contemplar e com demônios a te cultuar.]


Quando estavas por aqui...

sexta-feira, 25 de março de 2011

Nos dias...

Nos dias em que havia dias,
Havia um mundo
E tudo existia.

Havia haver,
Existia existência,
E eu vivia sem estar morta.

terça-feira, 1 de março de 2011

Que maravilha...

I

Que maravilha que é poder sofrer mansamente num canto quieto,
Que maravilha que é padecer calmamente sem dar explicações a ninguém,
Padecer sem consolos e sem esperanças...
Ah, que maravilha que é estar a sós com a dor que levemente nos punge
E desfrutarmos dela sem a banalidade dos deveres,
Sem a mesquinhez das coisas sociais...
Que maravilha que é sofrer despreocupadamente no silêncio de todas nossas galáxias vazias do peito,
A ouvir apenas o barulho do nosso coração sussurando gemidos ao pulsar.

II

Pesa nessas horas preencher essas horas.
Tudo torna-se despropositado e de um esforço inútil e multiplicado a cem, a mil,
Como se a própria força da gravidade tivesse se multiplicado.
Até ao coração é um fardo bater, um esforço degradante.

III

Que maravilha?
Tudo passa lento e arrastado,
Inclusive a volúpia da dor leve,
Que já passa e vai embora.
Não é cansaço, não é desânimo,
É coisa para além disso.
Ah, alma minha, nem deitar é suficiente,
Tu queres, ao nada querer,
Um estado de repouso abstrato que não existe,
E assim tu flutuas no desconforto da insatisfação de uma não-vontade.